Nunca mais me esqueço de um alerta fundamental que li, há uns anos atrás, em Berlin: ser livre é "ser alguém e não ninguém". Trata-se de uma resistência moral contra a massificação e o colectivismo. Foi o Cristianismo que descobriu a Pessoa nessa dimensão única, enquanto imago Dei e projecto irrepetível na sua intocável dignidade.
Nasceu em Riga, na Letónia, nos inícios do séc. XX. Mas era britânico por convicção.
Quando eclodiu a célebre "Revolução Russa", em 1917, era ainda bastante jovem, mas a sua família foi marcada pelos dramáticos acontecimentos, que viriam a ter uma forte influência no seu percurso intelectual e na sua formação.
A experiência totalitária, com a tirania do Partido Único (guardião do "interesse geral") e a sua demoníaca pretensão de "engenharia social", numa efervescência utópica delirante, iria marcá-lo decisivamente.
Falo de Sir Isaiah Berlin, um dos maiores pensadores políticos da época contemporânea e um defensor qualificado da liberdade e dos seus pressupostos ético-filosóficos.
A reflexão de Berlin é, a um tempo, suave e fascinante.
Conhecedor profundo da História das Ideias, Berlin escolheu alguns pensadores como pontos de referência, construindo um diálogo versátil com certos "adversários da liberdade", entre os quais Jean-Jacques Rousseau, Hegel e Marx, sem esquecer Maquiavel, Herder, Vico ou mesmo Schiller.
A sua obra é um daqueles milagres que marca, para sempre, toda uma cultura e civilização.
Qualquer debate instruído sobre as democracias constitucionais tem de passar, pois, sob pena de um retrocesso intolerável, pelo "planeta Berlin" e pelos seus contributos seminais.
É impossível resumir, num simples artigo de jornal, uma obra tão elegante e tão complexa. Mas creio que o contributo fundamental de Isaiah Berlin, em termos de ideias políticas, foi a definição (ou o aprofundamento) dos chamados "dois conceitos de liberdade". A partir dele, esta distinção tornou-se canónica na filosofia política ocidental.
Nunca mais me esqueço de um alerta fundamental que li, há uns anos atrás, em Berlin: ser livre é "ser alguém e não ninguém". Trata-se de uma resistência moral contra a massificação e o colectivismo. Foi o Cristianismo que descobriu a Pessoa nessa dimensão única, enquanto imago Dei e projecto irrepetível na sua intocável dignidade.
A Tradição da Liberdade, de que Berlin é um representante destacado, arranca justamente desse pressuposto Cristão, hoje tão esquecido pelas correntes "pós-modernas" e relativistas.
Basta revisitar os Federalist Papers ou ler a Declaração de Independência norte-americana, de 1776, para se ter a devida noção das coisas e da verdade.
Quais são, então, os "dois conceitos de liberdade"? A resposta é relativamente simples: a liberdade negativa e a liberdade positiva.
Por "liberdade negativa" entendia Berlin a ausência de constrangimentos, ou seja, uma esfera [i] de actuação em que o indivíduo vê-se livre de qualquer coacção ou restrição externa. Corresponde, basicamente, à concepção liberal clássica. Trata-se das "liberdades civis", ou, na terminologia das modernas constituições, dos "direitos, liberdades e garantias".
Stuart Mill, em 1860, não estava longe disso, quando falou, no seu clássico On Liberty, do "reconhecimento de certas imunidades" - "[...] called political liberties or rights, which it was to be regarded as a breach of duty in the ruler to infringe, and which, if he did infringe, specific resistance, or general rebellion, was held to be justifiable".
É flagrante a semelhança entre esta passagem de Mill e o art. 19.º da actual Constituição da República de Cabo Verde: "É reconhecido a todos os cidadãos o direito de não obedecer a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão ilícita, quando não seja possível recorrer à autoridade pública".
Por sua vez, a "liberdade positiva" corresponderia aos chamados "direitos sociais". Requer-se, neste caso, uma actividade prestadora do Estado, para que o indivíduo possa concretizar, na prática, a sua autonomia pessoal.
Se um rapaz pobre de aldeia não puder frequentar uma escola, onde possa instruir-se e preparar o futuro, a sua "liberdade de aprender" perde todo o significado.
As duas liberdades são, deste modo, complementares, mas Berlin, como um bom liberal, dava primazia à primeira.
É que o agigantamento do Estado, em nome do "bem-estar", pode levar à supressão de "círculos" crescentes de liberdade e à instauração de políticas assistencialistas, com todos os vícios que isto acarreta.
O défice público e o aumento do desemprego estão normalmente associados a esse tipo de políticas.
O ideal, num Estado democrático, é que haja a máxima liberdade possível, salvaguardando-se, para tal, a iniciativa privada e o espírito de inovação. Schumpeter explicou, com brilho, como se processa a imponente "destruição criativa".
Sem isso, não há progresso tecnológico nem autêntica realização humana. Mas tem de haver, também, um "chão comum de cidadania" (João Carlos Espada), sendo lícita a intervenção do Estado para proteger aqueles que realmente necessitam.
O sentimento de compaixão é um traço marcante na filosofia moral de Adam Smith.
Contudo, a intervenção estatal há-de ser complementar e subsidiária, sem pôr em causa a prioridade da sociedade civil, tal como tem sido propugnado, por exemplo, pela Doutrina Social da Igreja, desde 1891.
Isaiah Berlin, um gentleman, não desprezava o valor da solidariedade. A sua concepção de liberdade só é compreensível, aliás, ao lado de um outro conceito que ele estimava bastante: o "pluralismo ético". O mundo é composto por vários valores e não se pode sacrificar um em detrimento dos restantes.
J. C. Espada, numa bela síntese, recordou-nos as palavras sábias de Isaiah Berlin:
"'Liberdade é liberdade, não é igualdade, ou equidade, ou justiça, ou cultura, ou felicidade humana, ou uma consciência tranquila'. Esta é uma das muitas célebres passagens do mais famoso ensaio de Isaiah Berlin (1909-1997), 'Two Concepts of Liberty'. O texto serviu de base a uma conferência em Oxford, em 1958. Ainda hoje continua a ser discutido, objecto de estudo, tema de livros e dissertações académicas" (http://www.ionline.pt/conteudo/12722-isaiah-berlin-liberdade-e-pluralismo).
Os valores convivem, portanto, numa tensão precária e difícil.
O equilíbrio, atrevo-me a acrescentar, só é alcançável pelo diálogo democrático, através das leis e da prática jurisprudencial, convocando, naturalmente, um "modelo de argumentação" razoável, no quadro dos princípios constitucionais e de uma como que "tradição de compromisso", que, aliás, é dinâmica e passível de actualização em cada momento histórico.
Mas é fundamental ler Isaiah Berlin e discutir os seus ensinamentos.
Se o dr. José Maria Neves [ii] tivesse lido Berlin, jamais diria que a liberdade remonta a...Amílcar Cabral!
Compreenderia a diferença entre Soberania e Liberdade, sendo esta última profundamente tributária do chamado "governo limitado", peça central no pensamento anglo-americano.
Cabral [iii], admirador de Lenine, o "pai fundador" dos bolcheviques, defendia uma "democracia revolucionária" que nada tinha a ver com isso. No plano jurídico-político, Amílcar nunca se afastou da "vodka" marxista-leninista.
A afirmação de Neves não é, porém, um disparate isolado. É, mais do que isso, um resquício da cultura totalitária, que paira, como uma nuvem negra, sobre a jovem democracia cabo-verdiana.
Até quando?
Notas:
[i] "Reserva de solidão perante as totalidades sistémicas", no dizer percuciente de Baptista Pereira.
[ii] Actual Primeiro-Ministro de Cabo Verde. Cometeu meia dúzia de crimes no dia 22 de Janeiro de 2006 e nunca foi julgado pelo facto. A subserviência do "poder" judicial foi total, neste caso. O Estado de direito ficou irremediavelmente desacreditado.
[iii] Fundador do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde). Em 1956, a crer na historiografia oficial. Organizou a chamada "luta armada" na Guiné-Bissau, contra o colonialismo português. Abraçou uma doutrina muito próxima do "socialismo africano", tal como NKrumah ou Julius Nyerere.
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