Avaliação provisória e parcial de uma revisão constitucional: a tentação do direito simbólico, o sistema de justiça, extradição e buscas, a separação das legislativas das presidenciais, «direito de necessidade» e a (in) validade da «traição» na política, no beijo e na poesia
1. Ainda não temos em mãos os resultados definitivos do processo de revisão constitucional que acaba de ser levado a cabo. Não poderemos, assim, com um mínimo de rigor, proceder a uma sua avaliação cabal e definitiva. Desde já se esclareça que não há nova Constituição (de 2010), como já se pôde ler em certos media, mas mera reforma que nem sequer consubstancia uma transição constitucional. A Constituição em vigor continua a ser, pois, a de 1992.
2. No entanto, pelo que pudemos acompanhar por relatos radiofónicos e televisivos, cremos que foi sobretudo no domínio do sistema de justiça que as alterações poderão traduzir-se em criação de condições para uma mudança relevante do status quo. Referimo-nos ao sistema institucional – composição dos Conselhos de gestão, modo de designação de seus membros, criação de tribunais de segunda instância, serviços de inspecção judicial, nomeadamente. E dizemos criação de condições, pois sem desenvolvimentos legislativos e, sobretudo, sem a adopção de políticas concretas da parte do governo, não haverá milagres constitucionais (fé constitucional) susceptíveis de ultrapassar a famigerada «crise da justiça» e de gerar, de imediato, um clima de justiça ou perceptíveis resultados encorajadores. Sem alterações nos estatutos dos magistrados, nos critérios de recrutamento e progressão, de exigências nas inspecções autónomas e extensivas a todo o sistema), na responsabilização pelas omissões injustificadas (para não falarmos nas «monstruosas»), na qualificação técnica dos agentes da justiça a todos os níveis, corre-se o risco de, a prazo, voltarmos ao estado da descrença, ao discurso da «crise» e à formulação ingénua, repetida, inflamada e à flor da pele de novas mudanças legislativas, de novos apelos à desconstitucionalização de garantias e direitos, senão mesmo ao reforço dos mecanismos e práticas de restrição em cascata de direitos fundamentais.
3. E é por isso que atrás mencionámos reformas que relevam do domínio do chamado direito (penal) simbólico. Foi alterada a cláusula sobre a proibição (até agora absoluta) de extradição de nacionais. O que se fez? Optou-se pela solução brasileira, o que significa passar a haver a possibilidade de extraditar cabo-verdiano naturalizado, mas apenas em situações em que a obtenção da nacionalidade por naturalização se dê posteriormente à prática do crime pelo qual se pede extradição (exemplo: A, filipino, comete o crime X em Antuérpia, no dia 1 de Janeiro de 2010 e refugia-se em Cabo Verde. Torna-se cabo-verdiano por decisão proferida a 20 de Julho de 2010. Esta condição de nacional não impede que seja extraditado, verificando-se os demais requisitos constitucionais e legais de extradição). Esta é uma solução que resolve algum problema relevante? Não é preciso ser jurista para perceber que pode resolver uma ou outra situação pontual, excepcional, residual.
[Não estamos a ponderar revisão que permite «entrega» ao TPI em determinadas circunstâncias, esta também à partida condicionada, já que – talvez este facto tenha passado despercebido a muitos cidadãos – o Estado de Cabo Verde se comprometeu, por acordo («de consentimento prévio») aprovado por Resolução de Novembro de 2004, a não «entregar» cidadãos norte-americanos. Pode perguntar-se legitimamente: afinal, qual a dimensão da efectiva importância para o Estado de Cabo Verde da adesão ao TPI?! Demais a mais, como já escrevemos noutro género de publicações e repetidamente, a erosão e a anomia valorativas que pode trazer a aceitação da aplicação da pena de prisão perpétua por parte de uma entidade judiciária internacional – pensamos sobretudo a nacionais cabo-verdianos – poderá potenciar a tentação de remover a própria garantia da proibição daquela pena no plano interno. E depois de tal remoção, a de mais uma e mais outra e assim por diante! ).
4. Pensando na alteração relativa às buscas domiciliárias nocturnas, é claro que ela é relevante, já que a partir da entrada em vigor da lei de revisão constitucional, será permitida a utilização de um tal método de obtenção de prova fora dos casos, simplifiquemos por comodidade, de «direito de necessidade», em certas circunstâncias, designadamente de verificação de determinados tipos de crimes graves como o terrorismo e certos «tráficos». Mantemos a posição que temos sufragado invariavelmente há muitos anos, em estudos e escritos diversos: a alteração não se mostrava necessária e revela-se, pelo atrás referido, perigosa como metodologia de aproximação e solução dos problemas, assente no facilitismo, no imediatismo e numa postura de radicalização do critério da eficácia. Até pela singela razão de, e já tivemos várias oportunidades de, por escrito ou oralmente, de confronto argumentativo com defensores do alargamento de uma tal possibilidade excepcional, ninguém ter conseguido até hoje, minimamente que fosse, dar um exemplo prático, fornecer um caso judiciário, uma possibilidade real, em que não se pudesse alcançar o desiderato pretendido (a perseguição eficaz do delinquente e do crime em causa), de forma razoavelmente aceitável, sem necessidade de apelo ao mais fácil, ao mais cómodo, mas cerceador desnecessário de garantias estabelecidas constitucionalmente. Enfim, não estaríamos, voltamos a repeti-lo, numa situação de estado de necessidade de investigação (Ermittlungsnotstand) para mais uma citarmos HASSEMER.
5. Igualmente houve alterações importantes no plano, digamos, do sistema político, pela adopção de medida que concretiza uma «divisão político-temporal do poder, já não através da previsão de durações diferentes de mandatos dos titulares dos órgãos representativos (parece que uma tal proposta não foi acolhida no acordo interpartidário) mas, sim, da não cumulação das datas das eleições legislativas e presidenciais. Solução que, nalguma medida, pode contribuir para que o modelo de sistema de governo instituído, e felizmente mantido (o semipresidencialismo fraco), se possa mostrar, na sua realização efectiva, mais em sintonia com o objectivo dos constituintes originários de obter uma determinada natureza das presidenciais (eleições mais de cidadãos e menos dos partidos) e uma concreta modelação dos poderes presidenciais (de arbitragem do sistema político e dos poderes e de exercício de uma «magistratura de influência» real). O que também seguramente não se fará de um dia para o outro e exigirá outro tipo de factores, como uma mais forte cultura democrática e uma mais sólida cultura constitucional.
6. De todo o modo, registe-se que a alteração vigorará já nas próximas eleições presidenciais (de 2010), contrariamente à pretensão formulada pelo GP do MPD, sem grande insistência, diga-se em abono da verdade, o que vai obrigar a um alargamento (sempre discutível, de uma perspectiva constitucional) do mandato do actual PR. Postura que, aliás, é susceptível de favorecer especulações a respeito dos propósitos estratégicos do actual líder do PAICV, apesar de declarações à partida claras e inequívocas para os media («em circunstância alguma serei candidato presidencial»). Diga-se, para finalizar, que uma mudança de intenções – pouco provável - seria, do ponto de vista, «legal», perfeitamente aceitável e politicamente compreensível (há sempre, veja-se, a possibilidade de «direito de necessidade»!) . Pelo que também não deverá haver motivos sérios e consistentes para que eventuais candidatos presidenciais se mostrem agastados ou «traídos» ou imbuídos de um qualquer outro sentimento que, na política a doer, normalmente pouco conta.
7. É que, não sendo o terreno da política mas, sim, o da poesia, bem se poderia dizer, como o fez poeta : « Afinal quem não trai?/ Em cada prenúncio de beijo,/
há,/sitiado,/um braço de traição./Num esquife desenterrado,/ri-se a poesia,/finalmente desperta,/ de quem pretende fazer versos com «frémitos orgásticos».
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