“A verdadeira reforma do Estado cabo-verdiano será aquela que preconiza uma efectiva regionalização administrativa do país”
Jorge Santos, Antigo Presidente da ANMCV
Os cabo-verdianos, na sua maioria, reconhecem o poder local como uma das grandes experiências da nossa jovem democracia. A realização das primeiras eleições democráticas para os órgãos locais constituiu-se num momento chave no lançamento das bases para a aproximação do poder às populações e no equacionamento e resolução dos problemas de vocação eminentemente local.
Após cinco eleições para as autarquias locais, salvo excepções raras, o balanço do desempenho dos diferentes protagonistas pertencentes aos vários quadrantes políticos e independentes é claramente positivo. A descentralização conduzira ao desencravamento de territórios, outrora abandonados, abrindo caminho à integração das vilas e aldeias no contexto do desenvolvimento nacional. A este propósito, quem é que não se recorda, por exemplo, do concelho dos Mosteiros, antes da sua criação em Dezembro de 1991.
O desenvolvimento do país deve ser encarado como um esforço de todos os poderes, o central e o local. A complementaridade deve constituir-se numa aposta permanente no que ao relacionamento entre os dois poderes diz respeito, privilegiando a via do diálogo e da cooperação institucional. O país precisa cada vez mais de uma visão global e favorecedora de criação de sinergias para o seu crescimento harmonioso e equilibrado.
A descentralização é seguramente um factor de democratização. Entendo, pois, que o estádio de desenvolvimento em que nos encontramos aconselha-nos, sem titubear, a aceitar o poder local como elemento de aprofundamento da democracia local e factor de afirmação das regiões.
GOVERNO E PODER LOCAL: EXISTIRÃO INCOMPREENSÕES?
Tenho reconhecido, amiúde, o bom desempenho do Governo do PAICV em áreas como a política externa e a infra-estruturação do país. Confesso que a problemática da descentralização tem sido um ponto fraco do Governo de José Maria Neves. Os quase dez anos de governação “tambarina” foram marcados por um clima de desconfiança e descrença no poder local, legitimamente eleito pelas comunidades locais. Em matéria de reforço da descentralização, fica claro que foi uma década perdida.
Creio que os sinais em matéria de estilo e prática de governação têm revelado um PAICV, como um partido de matriz profundamente centralizadora. A forma como o Governo, de forma reincidente e sistemática geriu a problemática dos solos é disso exemplo. Entendida por muitos, como uma forma disfarçada de nacionalização dos terrenos municipais, a lei de solos aprovada pela maioria, constitui-se num dos piores atentados à autonomia municipal, quanto mais não seja, pelo facto da administração patrimonial se constituir num dos elementos basilares do poder local. Espero que, com a revisão da mesma, se consiga expurgar as “zonas sombras” e resolver de forma definitiva a polémica questão da titularidade dos terrenos em território municipal.
Efectivamente, o Governo aproveitou e bem, da inexistência de uma verdadeira lei-quadro da descentralização, para se relacionar com os municípios num contexto de incompreensões e disputas permanentes, favorecedor de um clima de tensão política, que em nada beneficia os genuínos interesses e aspirações das comunidades locais. Torna-se urgente a adopção dessa lei, que irá definir e clarificar as competências e o quadro de relacionamento entre o Governo e os municípios, baseado em critérios claros e objectivos.
Outro sinal extremamente negativo foi a discricionariedade na gestão dos contratos-programa. O Governo privilegiou as “Câmaras Paralelas” em detrimento do poder local, legitimamente eleito pelas populações. Não se pode conceber que contratos-programa em valores superiores a alguns orçamentos municipais sejam afectados a associações comunitárias, de competência técnica duvidosa, ou que se assine contratos com associações em municípios da oposição, como Porto Novo e Ribeira-Grande e no Paul com a Câmara Municipal da situação. Isto não deve continuar a ser regra no país. José Maria Neves deve dar um sinal claro em como valoriza a autonomia municipal, confia no desenvolvimento local e regional e que está interessado em inaugurar uma nova etapa no relacionamento com os autarcas e com a sua organização representativa, a ANMCV.
A faceta centralizadora do Governo é também notória na forma como encara a cooperação descentralizada. Há uma clara tendência para a centralização da cooperação, deixando os municípios na dependência dos critérios subjectivos e da sua prerrogativa de discricionariedade. Sem pôr em causa a orientação global em matéria de política externa, que cabe naturalmente ao Governo da República, deve-se criar os mecanismos legais e institucionais que permitam aos municípios estabelecerem as parcerias com congéneres e organizações estrangeiras, mormente no quadro das regiões ultraperiféricas da União Europeia. Os municípios devem ser vistos como um parceiro insubstituível do Governo e não como um concorrente. Aliás, o Governo, sempre que possível, deve servir de factor de intermediação e facilitador de uma diplomacia positiva junto dos parceiros internacionais.
É num contexto marcado por desencontros e incompreensões que o país perdeu oportunidades em tempos de “vacas gordas”. O Governo, ao escolher a via da confrontação (visível no relacionamento com a Câmara Municipal de São Vicente), adiou a concretização de projectos estratégicos e inadiáveis para a ilha do Monte Cara, no importante sector da imobiliária turística, com todos os impactos positivos que teria no relançamento da economia, numa ilha que regista alta taxa de desemprego, níveis elevados de pobreza e marasmo económico. A recente abertura do Aeroporto Internacional de São Vicente deveria já estar a contar com todos os investimentos necessários na área do turismo. Acredito que São Vicente e Cabo Verde passarão anos para recuperar a oportunidade perdida.
O DESAFIO DA REGIONALIZAÇÃO
Para António Simões Lopes, notável académico português, todo o desenvolvimento é desenvolvimento regional. Em Cabo Verde, Jorge Santos, antigo Presidente da Associação Nacional dos Municípios Cabo-verdianos tem sido um dos rostos defensores da regionalização administrativa do país, enquanto elemento fundamental da reforma do Estado.
Confesso o meu interesse e entusiasmo pelas visões de Simões Lopes e Jorge Santos, enquanto referências positivas, na conformação de uma visão consistente e realista do modelo de desenvolvimento regional. Em tese, qualquer um de nós apoia o princípio da regionalização, no sentido de permitir uma maior aproximação do poder às populações e de se constituir em factor de democratização e reforço da cidadania. É verdade que existirão estudiosos e políticos que desconfiam dos méritos da criação de regiões por fomentar bairrismos, aumentar os custos da administração com a criação de novos titulares e sobretudo, por poder pôr em causa a necessária unidade e coesão nacionais.
As regiões enquanto poder intermédio entre o Estado e os Municípios podem preencher o vazio de poder existente e constituir-se em mais-valia no relacionamento entre o poder central e local. Sem condicionar a esfera do poder municipal, as regiões podem exercer atribuições importantes, até agora do domínio do Estado, através dos seus serviços desconcentrados, em áreas com o Ambiente, Protecção Civil, Agricultura, Transportes, Educação, Saúde, etc.
As regiões administrativas eleitas directamente pelas comunidades podem assumir-se como factor de desenvolvimento da economia local, tirando proveito das imensas potencialidades de cada ilha. A nossa própria condição de país insular é favorecedora de uma visão defensora da criação de regiões. Diria até, que somos um país naturalmente regionalizado, faltando o debate nacional necessário para a construção de um compromisso de regime, dotando o país do melhor modelo de desenvolvimento, capaz de contribuir definitivamente para a correcção das assimetrias regionais e da integração das ilhas no processo de desenvolvimento nacional.
Sem comentários:
Enviar um comentário